14 de abril: como essa data ajuda a explicar o futebol feminino enquanto símbolo de luta e resistência
Por Nathália Almeida
Quando uma emissora de TV ou rede social anuncia que transmitirá uma partida do futebol feminino, seja ela em nível doméstico ou internacional, não é raro nos depararmos com reações de rejeição 'justificadas' por uma ideia enraizada de que a modalidade é inferior, em competitividade, emoção e nível técnico. Contudo, poucos se interessam em conhecer/entender as origens e explicações para evidente desnível entre as modalidades: esqueça dom, interesse ou dedicação, pois nada disso está na balança. A razão é histórica, e tem o dia 14 de abril de 1941 como marco.
Há exatos 80 anos, o então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, promulgou o Decreto-Lei 3.199, que estabeleceu as bases de organização do esporte em todo o Brasil. Este documento, no entanto, selou um duro golpe aos direitos femininos no meio esportivo: a prática de diversas modalidades, dentre elas o futebol, estava terminantemente proibida para mulheres, com a justificativa de que tais esportes eram “incompatíveis com as condições da natureza feminina”. A absurda criminalização - acompanhada de perseguição a quem 'clandestinamente' descumpria a determinação -, perdurou por mais de quatro décadas no país e gerou graves consequências, que atingem a modalidade e suas protagonistas até os dias de hoje. Afinal, como compensar 42 anos de atraso?
Figuras de resistência
Em um trabalho espetacular de curadoria e levantamento de arquivos/registros históricos pouco conhecidos pelo grande público, o Museu do Futebol disponibiliza virtualmente a mostra 'Mulheres, desobediência e resiliência', que conta a história de alguns expoentes de resistência que desafiaram o Decreto-Lei e marcaram posição em meio às décadas de proibição. Através de fotos e jornais da época, entendemos o aparelhamento do Conselho Nacional de Desportos ao governo de Getúlio Vargas, com este órgão encabeçando a perseguição aos clubes e às atletas que corajosamente enfrentaram a criminalização do futebol feminino.
Entre os anos 1940 e 1980, clubes amadores como Corinthians Pelotense e Vila Hilda (RS), Araguari Atletico Club (MG), Esporte Clube Comercial e Grêmio Operário Futebol Clube (MS), Ponte Preta de Jacareí (SP) e outros se engajaram, cada um a sua maneira, na tentativa de derrubar o absurdo decreto. Entre partidas clandestinas e outros artifícios para escapar dos olhos atentos da CND e federações locais, conseguiram organizar diversos eventos com boa aceitação do público: em 1958, as atletas do Araguari Atletico Club levaram pouco mais de 20 mil pessoas às arquibancadas do antigo Independência, para uma exibição de caráter beneficente para arrecadação de fundos destinados à educação. Esta motivação social era uma das formas de 'amansar' a repressão da CND, e foi assim que muitas partidas de exibição aconteceram. A única forma possível, à época, para as mulheres seguirem marcando posição e presença nos campos.
Além de jogadoras e clubes, um dos grandes símbolos de resistência feminina neste período foi a árbitra Léa Campos, presa 15 vezes por conduzir jogos ilegais durante as décadas de proibição. Sua formação como árbitra contrariou a muitos, principalmente o presidente da Confederação Brasileira de Desportos nos anos 60, João Havelange, que chegou a afirmar em certa ocasião que "nenhuma mulher nunca se tornaria árbitra de futebol".
Heranças negativas da regulamentação tardia
Às custas de muito suor e luta de mulheres - e apoiado pela ascensão/fortalecimento dos movimentos sociais e pressão pela redemocratização -, o futebol feminino alcançou a tão sonhada regulamentação em 1983, longos 42 anos depois da promulgação do Decreto-Lei 3.199. O primeiro jogo disputado pela Seleção Brasileira Feminina foi em 1986, e cinco anos depois, acompanhamos sua primeira participação em Copa do Mundo. A título de comparação, a primeira participação da Canarinho masculina em Mundiais aconteceu em 1930.
Essa linha do tempo totalmente antagônica é uma das muitas consequências dos anos de proibição: as estruturas e os processos mais básicos aconteceram com enorme atraso no futebol feminino, que ainda briga pela profissionalização e, em solo brasileiro, ainda sofre para consolidar um calendário de competições. Torneios de base ainda são itens em raridade, não por falta de meninas interessadas em jogar bola, mas pela falta de incentivo e investimentos. Por isso, analisar a modalidade sob a ótica do que é a realidade do futebol masculino há tantos e tantos anos é injusto: é projetar uma expectativa sem igualdade histórica de condições.
Conheça, apoie e valorize o futebol feminino
Ao longo deste mês de abril, o Museu do Futebol preparou uma série de atividades e programações especiais para rememorar a data e entender suas consequências e desdobramentos que perduram até os dias atuais. No próximo dia 27 de abril, será lançado o audioguia sobre futebol feminino - projeto sobre o qual falamos aqui -, resultado da campanha de financiamento coletivo Minha Voz faz História.
Com o apoio de 343 benfeitores, foram arrecadados quase R$ 100 mil para a elaboração do material que reúne 100 anos de histórias das mulheres do futebol brasileiro. Este audioguia será disponibilizado para a visitação ao Museu, como uma camada nova de conteúdo, mas também nas plataformas digitais para que as histórias possam ser conhecidas e utilizadas em ações educativas em todo o país.