As origens e o 'segredo' por trás do sucesso recente do Union Berlin, sensação da Bundesliga

Union Berlin é uma das surpresas desta temporada na Europa
Union Berlin é uma das surpresas desta temporada na Europa / Arte: Eduardo Fricks
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De tempos em tempos surge algo que desafia o conceito de gigante no esporte. Títulos, dinheiro, torcida... a somatória de tudo isso é capaz de gerar glórias que vão romper as fronteiras da memória. Mas e quando uma instituição esportiva literalmente faz parte da construção histórica de um país inteiro? Existe uma definição para algo tão grandioso?

Se você é um fã assíduo do futebol europeu, com certeza notou a presença de algumas forças ditas emergentes nas primeiras colocações das tabelas classificatórias das principais ligas. Brighton, Udinese, Athletic Bilbao, Lorient, e, na Bundesliga, o Union Berlin. Em exponencial crescente, a equipe da capital alemã tem atraído cada vez mais atenção.

Union Berlin entra em campo pela Europa League
História do Union Berlin remonta a um período singular da história alemã / Christof Koepsel/GettyImages

Mas para entender como o Union Berlin está colhendo bons frutos hoje, é preciso voltar em um passado não muito distante. Em uma era geopoliticamente completamente diferente dos dias atuais, o futebol alemão também era outro em estrutura, campeonatos e identidade das torcidas. Isso tudo nós te contamos a seguir.

A força motriz de um povo

Em 1906, na região de Oberschöneweide, até então um município a leste de Berlim, nascia o FC Olympia 06 Oberschöneweide. Logo de imediato, o time rompeu com a concepção de que o futebol pertencia às elites. Composta majoritariamente por estudantes, aos poucos a agremiação se aproximou de outra classe pouco prestigiada na modalidade: os operários.

Depois de uma breve fusão com o Union 92, um dos tradicionais clubes da capital, a nomenclatura da instituição passou por mudanças. Em 1910, surgia o SC Union 06 Oberschöneweide. Em paralelo, a cidade se transformava no centro da indústria bélica para a Primeira Guerra Mundial e se desenvolvia enquanto região operária.

Não por acaso, em 1920, surgiu o apelido Union de Ferro (Eisern Union, do alemão), em óbvia referência às fábricas. Além disso, a camisa da equipe em tons azuis virou um símbolo da ligação proletária, afinal, a semelhança aos uniformes dos trabalhadores era nítida. A torcida, claro, não demorou a abraçar o singular projeto.

Nas entrelinhas, a resistência de uma nação

Já ouviu o ditado "amor não enche barriga", certo? A expressão consegue resumir bem os anos seguintes do Union Berlin. Nem todo o apoio popular do mundo conseguiria salvar os Eisernen do que estava por vir. A equipe, engolida pela estrutura futebolística estabelecida durante o Terceiro Reich, se manteve modesta nas décadas subsequentes.

Até que uma separação mudou para sempre os rumos do clube. A Alemanha não era mais apenas uma só nação. Em suas complexas diferenças geopolíticas, se estabeleceram duas: Ocidental e Oriental. Em 1950, uma parte considerável do time se mudou para a parte ocidental da capital alemã e fundou o Union 06 Berlim.

Na metade oriental, o Union Oberschöneweide mudou de nomes várias vezes. Foi somente a partir de 1966 que a instituição passou a ser chamada pela intitulação atual. Em paralelo ao período de constantes mudanças e incertezas, o time foi aos poucos se tornando popular, sobretudo pelo rivalidade com o Dynamo Berlin, o clube da Stasi, a polícia secreta da República Democrática Alemã.

Havia muito mais que um antagonismo esportivo. Queridinho do governo, o Dynamo Berlin não cansava de empilhar títulos. Mas, ainda assim, os maiores públicos pertenciam ao Union, que se tornou uma espécie de símbolo de militância e resistência para os descontentes com a política que imperava no local.

Vale ressaltar, contudo, que o Union não era e nem poderia ser oficialmente contrário ao regime governamental. Mas isso não impediu que a identidade política surgisse nas entrelinhas. Foi exatamente a partir das palavras não ditas - mas que qualquer um era capaz de identificar - que uma modesta agremiação da Alemanha virou um canal de resistência.

Renascido das cinzas

A reunificação da Alemanha, em 1990, não melhorou a vida do Union Berlin de imediato. Apenas dois clubes da Oberliga ganharam acesso direto à Bundesliga, o que levou os Eiserns a recomeçarem da terceira divisão. Enquanto a média de público despencava, as dívidas subiam. Nem mesmo a venda de alguns dos principais jogadores do time parecia ser capaz de evitar o drástico destino.

Em fevereiro de 1997, a imprensa local dava a falência como certa. Acontece que nem o mais fidedigno dos veículos poderia prever que uma manifestação de cerca de três mil torcedores no Portão de Brandemburgo pudesse gerar consequências tão grandiosas. A iniciativa atraiu a atenção de dois patrocinadores: Studiocanal e Nike.

Aos trancos, barrancos, vaquinhas, ações e doações, o Union Berlin sobreviveu. Em 2000/01, os Eiserns enfim chegaram à segunda divisão da Bundesliga. E olha que essa nem foi a grande marca da temporada. Desafiando prognósticos - e gigantes -, a equipe chegou à decisão da Copa da Alemanha. Era o início de uma nova era?

Na campanha, dois adversários da elite ficaram pelo caminho. Nas quartas de final, os Eisernen derrotaram o Bochum por 1 a 0. Já na semifinal, a apaixonada torcida do Union celebrou a classificação sobre o Borussia Mönchengladbach nas penalidades máximas depois de um empate em 2 a 2 no tempo regulamentar.

Na grande decisão, disputada diante de 73 mil no Estádio Olímpico de Berlim, o valente Union sucumbiu ao tradicional e igualmente histórico Schalke 04. Jörg Böhme anotou os dois gols da vitória dos Azuis Reais. Ainda assim, o status de finalista garantiu aos Eisernen uma vaga na Copa da Uefa. Era de fato o início de uma nova era. Pelo menos em termos esportivos.

Jörg Böhme, meia do Schalke 04
Jörg Böhme encerrou o sonho do Union Berlin / Stuart Franklin/GettyImages

A situação econômica permaneceu complexa. Em 2004, um descenso à quarta divisão indicava outro perigoso flerte com a bancarrota. A salvação de novo veio das arquibancadas. Com o apoio da fanática torcida, o Union, por meio de outra gama de ações, mostrou que se recusava a perder. Na mesma época, a agremiação passou a ser presidida pelo empresário Dirk Zingler.

Renascido das cinzas mais vezes do que é possível contabilizar, o time da capital, nascido ainda na Alemanha Oriental, conseguiu o acesso inédito à Bundesliga na temporada 2018/19. A torcida, que precisou superar barreiras físicas, ideológicas e geopolíticas, esteve ao lado do Union Berlin para, desta vez, celebrar. Há grandiosidades que não cabem em títulos.

"Pés no chão" como filosofia administrativa

Paul Jaeckel, Sven Michel
Union Berlin não foi apenas um "passageiro" pela Bundesliga / Boris Streubel/GettyImages

Sua história marcada por idas e vindas e "flertes com o abismo" fez com que o Union Berlin, em seus bastidores, focasse em se tornar um clube cada vez mais responsável financeiramente e equilibrado administrativamente. Com uma política "pés no chão" - sem pretensões de gigantismo imediato, sem contratações bombásticas e/ou salários escandalosos -, o Union traçou o seu próprio destino: crescer de forma gradual e constante, rechaçando os luxos, mas também se permitindo sonhar e não se acomodando em apenas estar na primeira divisão. 

E foi assim que a equipe da capital passou muito bem por sua primeira temporada na elite nacional, superando um desafio gigantesco que até então não estava nos "planos" do clube e nem de toda a humanidade, basicamente: a Covid-19. Sim, o primeiro ano do Union de volta à Bundesliga foi o ano em que a pandemia global do novo coronavírus foi deflagrada, cenário complexo a ser contornado em virtude de todas as drásticas consequências financeiras que a paralisação do futebol trouxe especialmente aos times pequenos/médios.

Mas nessa altura do campeonato, resiliência já estava há muito no dicionário do Union Berlin, e a segura campanha de 41 pontos lhe garantiu a 11ª colocação. Os prognósticos negativos que pairavam sobre o clube recém-promovido da segunda divisão, de baixo orçamento e jogadores praticamente desconhecidos do grande público, haviam sido contrariados. Mas para 2020/21, com a normalidade social razoavelmente restabelecida, o clube queria mais. E buscou mais.

Alten Försterei, o "caldeirão" que virou símbolo do clube

1. FC Union Berlin v VfL Wolfsburg - Bundesliga
Alten Försterei, de capacidade para 22 mil pessoas, é a casa do Union Berlin / Boris Streubel/GettyImages

Com a liberação gradual do retorno de público às arquibancadas na Alemanha, o Union foi se consolidando, em 2020/21, como uma espécie de "mandante incômodo", especialmente para os gigantes do país como o Bayern de Munique. Naquela temporada, por sinal, o poderoso clube da Baviera não conseguiu vencer o time da capital: dois empates por 1 a 1, no turno e no returno.

O acanhado Alten Försterei, que praticamente é a imagem e semelhança do Union Berlin - modesto e bastante tradicional em estrutura, mas extremamente pulsante -, se tornou o "caldeirão" que a equipe precisava. E a sinergia entre jogadores e torcida se estabeleceu como uma fórmula poderosa, capaz de empurrar o clube rumo a um feito histórico: a sétima colocação do torneio nacional, garantindo ao clube uma vaga à Europa League de 2022/23.

"A ascensão do Union resultou, é claro, em um certo hype. O estádio está sempre lotado, a atmosfera no "Die Alte Försterei" é impressionante! O Union é um dos melhores times em casa - o que não é nenhuma surpresa. Mas você deve saber que os torcedores sempre estiveram lá, ao lado do clube, o que significa que não há "fãs de sucesso" pulando na onda do momento"

Jan Kupitz, head do 90min Alemanha

Faça chuva ou faça sol, não há uma partida sequer em que os pouco mais de 22 mil lugares do Alten Försterei não estejam ocupados. E essa conexão intensa entre arquibancada e campo continua fazendo a diferença para o Union: há algumas semanas, já pela Bundesliga 2022/23, o Bayern voltou a sentir a pressão dos Eisernen, mais uma vez saindo da capital sem os três pontos na bagagem. Por sinal, contamos a história deste jogo neste artigo aqui.

O exemplo de gestão como legado

Urs Fischer
Urs Fischer conduz projeto de longo prazo no Union / Boris Streubel/GettyImages

No exato momento da publicação deste artigo, o Union Berlin não apenas vive o sonho continental de disputar a fase de grupos da Europa League, como também aparece na liderança da Bundesliga 2022/23 com 17 pontos conquistados em oito rodadas disputadas. Jogando um futebol compacto, solidário, organizado e coletivo, o time de Urs Fischer foi o último a ser derrotado na atual edição, perdendo seu primeiro jogo somente na oitava rodada: 2 a 0 para o Eintracht Frankfurt, fora de casa. 

Não podemos cravar o que o futuro reserva esportivamente para o Union Berlin, afinal, o futebol funciona sob uma lógica toda particular de imprevisibilidade. Não podemos cravar que o clube repetirá o Leicester City de 2015/16, que chocou o mundo ao derrubar potências como Arsenal, Manchester City e Manchester United para conquistar a Premier League daquele ano.

Mas podemos cravar que o Union Berlin já deixou uma marca, um legado pelo exemplo: com uma gestão responsável, com uma filosofia bem definida, com forte trabalho de scout e valorização do longo prazo - trouxe em 2018 o seu atual treinador, Urs Fischer, para conduzir a reconstrução do clube dentro das quatro linhas -, o Union Berlin se tornou um bom exemplo a ser seguido por equipes tradicionais que vêm sofrendo esportivamente mesmo com receitas consideravelmente maiores: Hamburgo, Schalke 04 e até mesmo o Hertha Berlin, arquirrival bastante antagônico ao Union.

"Hertha e Union são grandes rivais - eles realmente não gostam um do outro. O relacionamento ficou ainda mais apimentado quando o Hertha conseguiu um grande investidor (Lars Windhorst) em 2019, que injetou cerca de 375 milhões de euros no clube desde então. Mas o Hertha não conseguiu fazer negócios inteligentes com todo esse dinheiro e assinou vários flops, como Piatek, Lukebakio, Schwolow, Tousart, só para citar alguns. O Union, por outro lado, nunca teve muito dinheiro, mas conseguiu fazer grandes negócios por seu trabalho de scout: contrataram muitos jogadores subestimados que se tornaram estrelas com eles (...) O Union sempre foi o azarão e o Hertha o grande clube "brilhante" de Berlim, mas esse papel mudou muito nos últimos 2/3 anos"

Jan Kupitz, head do 90min Alemanha
Ivan Sunjic, Rani Khedira
Union e Hertha são arquirrivais antagônicos na capital da Alemanha / Martin Rose/GettyImages

Contrariar a lógica, renascer, reverberar e se tornar espelho para outros: se engana quem acredita que grandeza se faz apenas com títulos. Eles podem vir ou não para o Union Berlin nos próximos anos, mas isso é secundário para Die Eisermen. Histórias singulares se constroem com muito mais do que taças, e a do clube da capital é uma das mais significativas do futebol alemão.