Luta, resistência e amor ao futebol: conheça a Champions Ligay – o esporte é para todos
Por Antonio Mota
Embora seja um dos esportes mais amados, queridos e acompanhados do Brasil e do mundo, o futebol ainda não trata abertamente de muitas questões sociais, como o preconceito contra a comunidade LGBTQI+. Afinal, historicamente, o mundo da bola é marcado por ser um ambiente “para macho”, com raízes machistas, sexistas e que tentam proteger o esporte em uma bolha heteronormativa. No entanto, na contramão de tudo isso, surge a Champions Ligay. Uma liga amadora LGBT que busca incluir a todos – e que você vai conhecer nesta segunda-feira, 17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia.
Em bate-papo com o 90min, Carlos Renan dos Santos Evaldt, zagueiro do Magia Sport Club e diretor financeiro da Ligay, destrincha esse "projeto LGBT, feito por LGBTs e para os LGBTs". O atleta fala sobre o surgimento, os desafios, receios e patrocinadores do movimento e muito mais.
Por dentro da Champions Ligay
A Champions Ligay é uma liga de futebol society direcionada exclusivamente para a comunidade LGBTQI+ que surgiu no final de 2017, no Rio de Janeiro, após um aplicativo de encontros promover um campeonato em São Paulo com esse mesmo foco. À época, oito clubes se reuniram e decidiram começar o torneio. O que é a Champions Ligay?
“Trata-se se um movimento de inclusão através do esporte, no qual a gente tem como lema ‘O esporte é para todos’. Por que isso? Porque a gente sabe que no esporte, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, tem um preconceito com a comunidade LGBT, que fica dizendo qual esporte que o LGBT pode praticar. Normalmente, é nado sincronizado, patins ou qualquer outra coisa assim bem estereotipada, né? Então a gente quer mostrar que o futebol é para todos, todas e todes, em qualquer esporte. Que podemos praticar esporte independentemente da sexualidade”, explica o diretor financeiro.
De 2017 para cá, a Champions Ligay cresceu, abraçou novas equipes e hoje está organizada nas cinco regiões do Brasil, tendo 45 equipes filiadas. Além disso, a Ligay também tem buscado formas de atender a todos os times interessados em participar da liga. A partir deste ano, por exemplo, a depender da situação da covid-19 no país, eles pretendem disputar o primeiro Campeonato Regional – torneio que vai dar a classificação para a Champions Ligay de 2022.
A Ligay, porém, vai muito além dos campos. “A Ligay não faz só o campeonato, mas todas as equipes que são filiadas à Ligay têm por obrigação estatutária, para poder participar da liga, desenvolver ações sociais nas comunidades em que estão inseridas. Então, a nossa proposta é fazer um esporte diferente do que tá aí, mais inclusivo, que tenha a sociedade participando para que as comunidades locais olhem os gays e os LGBTs de maneira diferente daquilo que acham que são. Então a gente quer fazer um pouquinho diferente”, completa Renan Evaldt.
Da organização da Ligay
Embora seja uma liga amadora, a Champions Ligay é extremamente organizada, com site, redes sociais e regulamentos das competições bem estruturados, programação anual etc. Renan Evaldt rememora todos os trabalhos para competição chegar a esse nível.
“Ainda falta bastante coisa. A gente tem uma diretoria eleita, cada clube tem sua própria diretoria, então a gente se organiza dessa maneira”, comenta Renan, antes de falar de como a liga centraliza a organização de seus filiados:
“A Ligay coordena esses trabalhos nas equipes e em cada uma delas nas cidades. Como que faz pra abrir uma conta corrente? Como que faz pra organizar um clube? Toda essa parte administrativa, a Ligay fornece aos filiados. A gente orienta, dá um norte, divide experiências que foram feitas no passado e na própria Ligay também”, afirma, emendando sobre o espírito colaborativo que marca o movimento:
“Para crescer, obrigatoriamente, tem de se organizar. A gente não pode crescer de qualquer modo, né? Temos advogados, médicos, administradores, bancários, auxiliares administrativos... Todas as profissões possíveis dentro dos quadros da Ligay. E, surgindo as necessidades, a gente pede ajuda gratuita para os nossos colegas de luta, que nos auxiliam a organizar. Eu cuido da parte financeira porque sou bancário, tenho maior conhecimento a respeito disso e uma certa disponibilidade de tempo também. No departamento jurídico, temos advogados e assim por diante. A gente procura utilizar os talentos que a gente tem dentro da Ligay.”
Além disso, Renan Evaldt também fala sobre o crescimento da Champions Ligay nas últimas temporadas. A liga começou com oito clubes e na sua última edição, em Belo Horizonte, em 2019, contou com 32. O diretor destaca a importância da experiência obtida nos últimos anos e pontua: “Uma das características do nosso campeonato é não entregarmos a organização para terceiros. É um campeonato LBGT, feito por LGBTs para LGBTs. Então, não queria entregar para que um hétero ou uma empresa ou alguém fizesse o campeonato e não tivesse o mesmo cuidado nem entendesse como gostamos de ser tratados”.
Das dificuldades e relação com patrocinadores
Apesar do trabalho sério e de toda a organização, a Ligay sofre com dificuldades para angariar patrocínio. Segundo Renan, encontrar apoiadores para os times LGBTs e para o torneio é o mais difícil. Ele sublinha: “É importante dizer que, em matéria de dinheiro, a Ligay e os clubes não têm nenhum incentivo público pra fazer acontecer”.
“A nossa maior dificuldade é realmente encontrar dinheiro. Fazer um evento desses não é barato. Na Na edição de Porto Alegre, foram gastos 80 mil reais, que nós conseguimos levantar através de parcerias e muito dinheiro pessoal envolvido. Transporte, estadia e alimentação é por conta de cada atleta, se o clube se organizou para conseguir pagar para todo mundo, diminuir os custos com festas, com rifas, enfim, com trabalhos ao longo do semestre, do ano, ok, mas cada um pagou as suas despesas pra vir”, explica o diretor financeiro.
“Não que eu esteja dizendo que ninguém quis patrocinar porque somos LGBTs, a gente sabe que não tá fácil pra ninguém, que tá difícil para o esporte como um todo. Mas, mesmo com toda nossa organização, ainda há empresas com receio de associar sua marca a um projeto LGBT consistente, que dura o ano inteiro.”
Renan Evaldt completa falando de como eles trabalham para superar essas adversidades. “Como é que a gente faz pra vencer isso? Insistindo, batendo na mesma tecla, dividindo despesas entre os clubes, porque não é brincadeira”, frisa.
Além disso, o zagueiro do Magia Sport Club ainda detalha como a Ligay dá suporte aos clubes no tocante aos possíveis apoiadores. “As equipes estão abrindo CNPJ pra poder participar. Existem algumas empresas pequenas e médias que investem um valor, pequeno ainda, nos clubes, mas é basicamente uniforme, uma ajuda de custos. Se eu te disser que tem uma equipe dentro da Ligay que ganha um patrocínio de 1.000 reais mensais, não existe, tá? O que temos são parcerias. Por exemplo, até antes da pandemia, eu tinha uma parceria com a quadra de futebol que nós jogávamos, que nós pagávamos 50% da quadra. Basicamente, os outros clubes também funcionam mais ou menos assim.”
Mesmo abordando as dificuldades encontradas pela Ligay e pelos times, Renan reforça o trabalho social que promovem. “É importante salientar também que a Ligay não é só o esporte. A Ligay é um projeto social incrível, que promove a inclusão de pessoas LGBTs. E aí eu te digo: são pessoas em situação de vulnerabilidade social, que a gente consegue fazer um resgate e trazer pra um caminho bom. O esporte é uma ferramenta poderosa de inclusão, não só pro LGBT, como em toda a sociedade”, completa.
Mulheres, trans e faixa etária
Com o intuito de incluir cada vez mais grupos, a Ligay abriu espaço para equipes de mulheres e de atletas trans. “A partir da quarta edição da Ligay, nós começamos a fazer times femininos também. Inicialmente, éramos só masculinos, depois com femininos e, a partir da segunda edição aqui de Porto Alegre, a gente já começou a inserir atletas trans. Nossa ideia é incluir cada vez mais, todas as letras LGBTQIAP+ que nos representam pra dentro do esporte”, explicou Renan Evaldt .
Sobre a idade, o diretor aponta que não existe nenhum limite, mas que há restrições (ou limitações). “Hoje, a gente aceita atletas de 18 ao ‘infinito’. Nós não temos uma separação por idade. Por que acima de 18? Até pra nos protegermos. Porque a gente sabe como algumas pessoas são maliciosas e podem simplesmente achar que existem certos abusos com menores de 18 ou qualquer coisa assim. Abaixo dessa idade, somente acima de 16, com a presença dos pais e com a autorização por escrito, além de um o atestado de saúde”.
Da Ligay enquanto movimento de luta e resistência
Renan Evaldt também ressalta a importância da Ligay como um momento de resistência e luta no Brasil, um dos países que mais mata LGBTs no mundo. O diretor financeiro fala da necessidade de se posicionar e de não abdicar dos direitos conquistados ao longo dos anos.
“Eu acho extremamente importante a comunidade LGBT se posicionar cada vez mais e não voltar pra dentro do armário. Nós conquistamos direitos ao longo dos anos, e esses direitos foram conquistados com muita luta, com muita morte. Tudo que temos hoje, todo pouco que temos hoje foi conquistado com muito sangue. E a gente não pode aceitar retrocessos”, diz.
"A Ligay é extremamente importante, porque nós estamos nos inserindo dentro de um reduto tipicamente hétero, machista, sexista, muitas vezes racista também. Então é de extrema importância nós firmarmos posição dentro do futebol."
O zagueiro do Magia Sport Club ainda destacou os cuidados que a Ligay vem tomando a cada ano e de como precisaram reforçar a segurança após as eleições presidenciais. “A primeira Ligay, no Rio de Janeiro, a gente tinha seguranças privados lá, mas preocupados com danos materiais, para cuidar do clube onde a gente estava fazendo. A segunda Ligay, aqui em Porto Alegre, que foi em 2018, pouco depois da eleição presidencial, se não me engano, eu contratei 15 seguranças privados pra fazer a segurança do pessoal e mais o apoio do Governo do Estado com a Brigada Militar e com a Guarda Municipal”.
“Naquele momento, nós temíamos algum tipo de atentado, algum tipo de protesto, algum tipo de violência. E a gente solicitou proteção ao poder público porque nós tínhamos muito receio de que fosse acontecer alguma coisa. O Brasil de um modo geral tá muito menos tolerante do que já foi um dia. A gente, inclusive, começou a fazer a revista do pessoal na entrada dos complexos esportivos por medo de violência. Há um aumento no número de mortes de LGBTs no Brasil inteiro e a gente teme pela segurança dos atletas", acrescenta.
Apesar do medo, a Ligay é um ambiente seguro, de diversão, de inclusão social, de resistência e que abre portas para a comunidade LGBTQI+ demonstrar o amor pelo futebol sem medo. Renan Evaldt relembra como foram os trabalhos para a construção desse espaço.
“Uma das coisas que a gente fala pra todas as equipes que estão entrando na Ligay é que a gente tem de dar o exemplo, pedir e demonstrar respeito. Quando você pede respeito e se dá o respeito, as coisas funcionam. A gente constrói esses espaços dentro do futebol com muito trabalho, com muita seriedade e com muita responsabilidade. Internamente, a gente é muito amigo um do outro. a gente recebe os nossos jogadores com muito carinho. E quando a gente vai disputar um torneio com times tradicionais, com héteros, a gente respeita muito o espaço de cada um.”
“Existem grupos pra marcar amistoso, jogar e treinar, e a gente entra em contato com alguns e eles dizem: “não, mas eu quero jogar com homem”. E depois a gente acaba encontrando-os nos campeonatos e ganhando deles. A gente tem conquistado o respeito da comunidade e de outros equipes. A aceitação só tende a aumentar”, projeta o diretor.
“A gente conquista esses espaços mostrando respeito, mostrando organização, mostrando que futebol gay é o mesmo futebol do hétero, que a cobrança de lateral do gay é a mesma coisa da cobrança de lateral do hétero.”
Por fim, Renan Evaldt responde: “Qual seria a principal mensagem que a Ligay quer passar?”. O zagueiro, bancário e diretor financeiro lembra o slogan da liga antes de detalhar sua resposta.
"Eu diria que é pelo lema que a gente utiliza: 'O esporte é para todos' ou para todxs, com 'x' no final. Quando a gente pratica um esporte, é porque a gente ama o jogo. A gente não tá lá para nada além de praticar o esporte", diz, recordando uma passagem emblemática sobre o preconceito:
Já fui perguntado por uma repórter... Ela olhou pra mim e falou: “Ah, mas eu tô achando esse teu uniforme tão ‘simplinho’, não tem um brilho, não tem lantejoula, não tem um nada”. Daí eu falei: "Não entendi a tua pergunta, a gente tá aqui para jogar futebol, não é uma festa. E a lantejoula não pode, porque pode machucar alguém. Não pode usar brinco, não pode usar nada.
Não contente com isso, ela me perguntou: “Ah, e o que vocês fazem no vestiário, como é que vocês fazem no banheiro?” Aí eu comecei a tirar sarro da cara dela, ao vivo, e disse: “Não, no banheiro, às vezes a gente faz de pé, a gente faz sentado, depende do que é, se é número 1 ou se é número 2”. Mas a pergunta dela era direcionada, obviamente, né? Se a gente entrava no vestiário ‘pegando’ os caras que estavam lá. Então rola muito isso no imaginário, que disputar um jogo onde tem um jogador gay, onde é uma equipe gay, que a gente vai sair pegando todo mundo.
É importante deixar claro que a gente tá lá única e exclusivamente pelo esporte. A gente não tá lá pra fazer pegação em banheiro, a gente não tá lá pra atacar ninguém, a gente não quer sexualizar as coisas. Nós temos o nosso jeito de praticar esporte. Nós temos o nosso jeito de comemorar, mas o futebol é jogado com as mesmas regras que a Seleção Brasileira joga, que o teu time do coração joga, são as mesmas regras. A gente não tá lá para dar close, para usar o uniforme brilhoso e para ‘dar pinta de gay’. A gente tá lá pra disputar o esporte, e acho que essa mensagem. 'O esporte é para todos'. É por respeito.
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