Seu clube ganha tanto dinheiro quanto merece?
Por Fabio Sá
Recentemente recebi o relatório da consultoria SportsValue com a análise das Finanças dos 20 principais Clubes de Futebol Brasileiros. O excelente relatório passa por questões importantíssimas, como “Custo com Futebol”, “Déficits do Exercício” e “Dívida Total” de cada um dos 20 clubes analisados, mas, nesta minha humilde análise, me concentrarei no tema da “Receita” que, a meu ver, é o termômetro mais fiel, não só da situação dos clubes, como também dos desequilíbrios (tanto por mérito quanto por política) entre eles.
Em tempo: aviso que sou torcedor do Fluminense, portanto, a minha tinta para com o clube pode soar mais ácida do que para com os demais. Por mais racional que sejamos, a emoção transparece nas análises clubísticas, sempre. Aviso também que sou admirador do Amir Somoggi, dono da SportsValue e parceiro nosso aqui no 90min, então, sim, estou exaltando o trabalho bem feito deles. Trabalhos bem feitos merecem vitrine.
Dito isso, vamos ao meu ponto de visto das receitas dos clubes de futebol do Brasil.
Primeiramente, o que já era esperado: todos os clubes perderam dinheiro em 2020. Alguns menos, como Goiás e Fluminense (-R$3M), alguns mais, como o Cruzeiro, que torrou mais de R$225M.
Olhando para a tabela de receitas gerais dos clubes nos últimos dois anos, além de podermos observar as perdas do ano 2020, outro fator chama a atenção: a estratificação dos clubes brasileiros em faixas muito claramente distintas, o que não existia há cerca de 10 anos.
Naturalmente, a enorme maioria dos 20 clubes com maior receita está na Série A, à exceção de Vasco, Botafogo, Cruzeiro, Coritiba e Goiás.
Segundo, reparem nas faixas dentre esses 20, e aqui não estamos olhando somente para o ano passado, e sim também para 2019:
- Da 16ª a 20ª posição na tabela de receitas, os times oscilam entre R$50-100M, e percebemos que isso se dá muito em função da receita de TV, já que são clubes que costumam oscilar entre as Séries A e B.
- Da 10ª a 15ª posição estão os clubes que têm uma dependência grande da cota de TV (veremos mais pra frente), mas também geram outros tipos de receita fortes, como venda de jogadores, bilheteria e patrocínios. Esses estão na faixa de R$150-250MM, fora as anomalias do Cruzeiro em 2019 (que conseguiu ser rebaixado mesmo com uma receita de quase R$300M) e do Red Bull Bragantino, clube-empresa que tem uma configuração diferente dos demais e que acaba de chegar à elite (provavelmente para não sair tão cedo).
- Entre o Corinthians em 3º e o Santos em 9º, a faixa oscila entre R$350-450MM, à exceção do Santos e do Inter em 2020. Aliás, o que torna ainda mais incrível como o Santos conseguiu chegar à final da Libertadores, com um orçamento de menos da metade do seu rival direto na final, o Palmeiras.
- E aí chegamos na faixa dos super-ricos, Palmeiras e Flamengo. Mesmo num ano de pandemia, esses clubes ficaram na faixa dos R$500-700M, sendo que no ano anterior o Flamengo quase atingiu R$1bi de faturamento. Como comparação, em 2019, as receitas do Flamengo foram equivalentes à soma dos 9 clubes da 12ª à 20ª posição na tabela (à exceção do Cruzeiro, para o qual usei o valor de 2020, mais dentro da realidade do clube). Olhando para os seus rivais locais, no Rio, a sua receita é maior do que a soma dos três.
Mas como entender essa discrepância tão grande?
A chave é olhar para o que compõe essa receita. Basicamente: direitos de TV, venda de jogadores, patrocínios, clube social / sócio torcedor, e bilheteria.
A dependência média dos clubes das receitas de TV e Premiações caiu de cerca de 40% em 2018 para 34% em 2020, mas também muito em função da paralisação dos campeonatos durante um longo período do ano. Mas ainda é um percentual alto, o mais alto entre todos, na composição da receita dos clubes.
Isolando cada uma das fontes, percebemos algumas coisas muito interessantes. Deixarei a receita de TV para o final, já que ela é a mais emblemática.
O item TRANSFERÊNCIAS DE JOGADORES parece refletir bem a saúde financeira e esportiva atual dos clubes, à exceção do Palmeiras, que nos últimos anos tem aproveitado muito melhor a sua base e segurado para vender bem nomes como Gabriel Menino. Os demais clubes bem ranqueados nesse item, da 1ª a 8ª posição, costumam não passar apuros no Brasileirão e, mais do que isso, frequentar a faixa de cima de todos os campeonatos que disputam.
O 9º colocado, Fluminense, é um caso à parte. Talvez a maior fábrica de talentos do Brasil, de onde recentemente saíram nomes como Pedro, Gerson, Scarpa, Marcos Paulo, João Pedro, Richarlison (que chegou ainda jovem ao clube oriundo do América-MG), o Flu tem uma receita com transferência de jogadores que não condiz com os talentos que revela. Algo de muito estranho acontece nas Laranjeiras. O caso mais recente do talentosíssimo Miguel, de 18 anos, joia da base, é emblemático. Assim como fizeram Scarpa (este aliciado pelo Palmeiras, que faz o mesmo agora com a joia “Messinho” do Cruzeiro) e Marcos Paulo, Miguel deverá conseguir sair de graça do clube, com quem tem contrato até meados de 2022. Quanto valem essas “gratuidades”?
Se olharmos as transferências recentes de um clube que sabe vender, como o Flamengo, e considerarmos que nenhum desses 3 jogadores têm a mesma atratividade (não falei futebol) de um Vinícius Jr, mas não deixam nada a dever para um Lucas Paquetá, poderíamos dizer que seu valor de mercado individual seria de cerca de 20-30M de euros. Digamos 25M. Em se confirmando a saída do Miguel, veremos três jogadores de 25M de euros cada saírem pela porta dos fundos do clube, de graça. 75M de euros assim, voando. Sabe quanto em reais? R$478M, na cotação de hoje. Quase quinhentos milhões de reais escorreram pelos dedos dos mandatários do clube, dinheiro esse que poderia servir para quitar a dívida total do clube (hoje estimada em R$650M), considerando aí uma pequena renegociação. Como justificar tanto desperdício em um clube que precisa tanto de dinheiro?
As receitas com PATROCÍNIO evidenciam o que já sabíamos. O Palmeiras não tem um patrocinador, e sim um mecenas. Nada contra, outros clubes (o próprio Palmeiras e o meu Fluminense) já tiveram e continuam tendo até hoje, vide exemplos europeus, mas essa é a verdade. Com R$115M de “patrocínio”, o Palmeiras supera os valores pagos aos clubes das duas maiores torcidas do Brasil, sendo que chega a ser mais de 60% maior do que o do seu rival Corinthians. Fora esses 3, que estão na casa dos R$75-100M, os demais clubes demonstram o quanto vale “de verdade” um patrocínio esportivo de time de Série A no Brasil.
Do 4º ao 12º lugar na tabela, vemos uma faixa de R$15-30M, que é MUITO inferior à faixa dos 3 primeiros e que parece refletir a realidade do valor de mercado dos clubes do Brasil. Destaque positivo para o Bahia que, mesmo fora do eixo Sudeste-Sul, consegue estar à frente de clubes como Vasco, São Paulo, Athletico-PR e tem mais do que a soma dos patrocínios de Fluminense e Botafogo. Aliás, esses dois últimos são os destaques negativos da lista. Como podem instituições consagradas como Fluminense e Botafogo arrecadarem respectivamente R$10M e R$6M de patrocínio num ano inteiro??? Para efeito de comparação, considerando que esses R$10M do Fluminense equivalem a cerca de R$850.000 mensais, basta pensar que cerca de metade de todo o valor arrecadado em patrocínio pelo Fluminense é o quanto o clube paga de salário para um atleta de baixíssimo rendimento, caso de Paulo Henrique Ganso. Ou seja, o clube não só arrecada muito pouco (está há mais de 2 anos sem um patrocinador máster, mesmo terminando o Brasileiro em 5º e esse ano jogando a Libertadores), como também gasta muito mal.
As receitas com SÓCIO-TORCEDOR E CLUBE SOCIAL também refletem bem a saúde financeira dos clubes, sendo que nesse caso o tamanho das torcidas, se bem trabalhado, tem grande influência. O excelente trabalho que clubes como Flamengo, Inter, Grêmio, Palmeiras e, mais recentemente, Vasco, vem fazendo nessa frente reflete nos números. Destaque negativo para o Corinthians que, mesmo com uma das maiores torcidas do país, presença nacional e estádio próprio, arrecada metade do que arrecada o Internacional, por exemplo. Outro destaque negativo é o Santos que, com a sua projeção internacional com nomes como Pelé e Neymar, tem no Sócio-Torcedor uma oportunidade ímpar de expandir não só as suas receitas dessa linha como também a sua marca global.
As receitas de BILHETERIA são um caso à parte em 2020. Em meio à pandemia, todos os clubes sofreram muito nessa linha, sendo impressionante como o Flamengo ainda conseguiu arrecadar R$30M, mais de 10x mais do que o Vasco, por exemplo.
A última, porém mais importante, linha de receita dos clubes é a receita de DIREITOS DE TV.
- As receitas de TV de Palmeiras e Flamengo (R$180M) foram só um pouco maiores dos que as de clubes como Grêmio e Corinthians (R$160M), mas, daí para baixo, começa o abismo. Comparado com os seus três rivais locais, o Flamengo faturou mais de R$100M a mais do que a média dos 3, todos estacionados entre R$75-95.
- O Santos, finalista da Libertadores, faturou com TV R$110M a menos do que o seu rival na final, o Palmeiras.
- O Fortaleza, com R$32M, 3x a menos do que o Vasco, tem que ser estudado para servir de modelo de como se gerir um clube na Série A com tão pouca receita.
Os detentores dos direitos de TV justificam tanta discrepância através de um modelo de “meritocracia”, em que fatores como tamanho de torcida e premiação por posições nos campeonatos geram bônus. Essa meritocracia é linda em situações onde todos saem da mesma linha de partida, mas, no Campeonato Brasileiro, ela é só uma justificativa para continuar engordando os cofres dos mais ricos (e mais politicamente poderosos).
Se o campeonato é jogado por 20 clubes, no qual teoricamente todos têm a mesma importância no seu momento-zero, e sabendo que a receita de TV é o fator mais pesado nas receitas dos clubes, principalmente os menos estruturados, continuar a justificar tamanha discrepância é uma vergonha e um atentado à real competição no futebol brasileiro. Como esperar que o Fortaleza dispute o mesmo campeonato que o Palmeiras ou o Flamengo que, só de TV, ganham 6x a mais? Ou como justificar que o Inter e o Athletico-PR, sempre tão bem colocados nos Brasileirões, larguem com R$110M a menos do que os dois super-ricos?
As receitas dos clubes são emblemáticas para enxergarmos algumas coisas:
1. Cotas de TV
O modelo vigente de distribuição de cotas de TV do futebol brasileiro é extremamente injusto, favorecendo somente os mais ricos e não só perpetuando, como também acentuando o abismo entre os clubes. Aquele campeonato Brasileiro que era tido como “o mais difícil do mundo” por ser o mais equilibrado acabou, e não é de hoje. Em 38 rodadas, ganhará quem tem elenco. Terá elenco quem tem dinheiro. Sempre terá mais dinheiro quem continuar a ser beneficiado pela estrutura vigente de poder.
2. Meritocracia torta
As demais linhas de receita, essas sim, refletem mérito. Em alguns casos um mérito “torto”, sim, porque há menos mérito em você ganhar uma corrida quando você larga muitos metros na frente dos seus oponentes (em função da discrepância das receitas de TV). Mas a verdade é que ainda há clubes, como o Corinthians, que largam na frente e ainda assim tropeçam, o que se vê no abismo entre as suas demais linhas de receita frente aos dois super-ricos e, principalmente, nos seus resultados esportivos dos últimos anos.
3. Austeridade como exceção
O relatório explicita alguns sucessos que merecem ser exaltados – dentre eles o Bahia, o Fortaleza e, principalmente o Athletico-PR, que aliam criatividade na geração de receitas com austeridade administrativa e resultados em campo.
4. Gigantes à deriva
Mas também joga luz em algumas anomalias, como as já descritas em clubes como Fluminense (que cria joias para em seguida dá-las de graça a outros clubes), Santos (com uma receita de sócio-torcedor do mesmo tamanho que as de Coritiba e Ceará), e Botafogo que, mesmo tendo a 10ª maior receita de TV, consegue ir mal em todas as outras linhas de receita, o que explica os seus seguidos insucessos esportivos.
Discutir futebol em mesa de bar ou em grupo de Whatsapp sempre foi o esporte favorito de nós, brasileiros. Como qualquer esporte, a discussão era mais legal ainda quando havia equilíbrio. Na minha infância e juventude, era impossível prever quem seria o campeão brasileiro daquele ano. Havia sempre 10, 12 “favoritos”. Basta ver a lista dos campeões (abaixo) para perceber essa alternância de poder, inclusive com títulos para equipes como Guarani, Bahia, Sport, Coritiba, coisa que seria IMPOSSÍVEL atualmente. Esse Brasileirão acabou. Não quero ser saudosista, até porque, como profissional do meio que sou, valorizo demais as inovações que levaram os clubes mais ricos a ficarem e permanecerem mais ricos. Mas ainda há o que se mudar no nosso futebol, a começar pela linha de partida, que são os direitos de TV.
Negociar individualmente é ótimo para quem paga a conta e também para os mais ricos, que não só ganham cada vez mais, como também veem os demais ganhando cada vez menos. As ligas esportivas que se prezam negociam essa fonte de receita em bloco, de forma igualitária entre todos os clubes. Aí sim, só depois disso, vem o mérito. Mérito das diretorias sérias, competentes, que não dão jogadores de graça, não negociam patrocínios a preços de banana (nem ficam anos sem Máster), não ignoram o sócio-torcedor, não queimam dinheiro com contratações caríssimas e inúteis, que não cavam mais a cova da dívida gastando muito mais do que arrecadam. Essas diretorias, como as do Athletico-PR, Bahia e Fortaleza, parecem merecer (digo “parecem” porque não boto minha mão no fogo) o sucesso esportivo dos seus respectivos clubes. Assim como diretorias como as de Flamengo e Palmeiras, que conseguiram converter as suas vantagens artificiais em abismos para os demais clubes, através do seu trabalho sério e competente de gestão.
Enquanto a bola rolar, ainda haverá chance de um time ganhar e o outro perder. Afinal, em uma partida, são 11 contra 11. Mas, em 38 rodadas do Brasileirão, ou em torneios continentais, ainda mais num calendário insano como o nosso, em que os clubes podem jogar OITENTA partidas num ano, vai ganhar quem tiver mais dinheiro, sempre ou quase sempre. Assim, a tendência é que a graça da rivalidade, do equilíbrio, da incerteza do vencedor, vá se diminuindo ao passo do tempo, como já visto em outras ligas lá fora, que cometeram os mesmos erros de acentuar os abismos e depois tentaram de tudo para corrigir a automutilação dos seus campeonatos em benefícios de uma ou duas instituições.
E, com ela, o interesse dos torcedores dos “outros” 18 clubes corre o risco de perder espaço para outras formas de entretenimento, desde os campeonatos europeus até o videogame. Se continuarmos assim, corremos o risco de perdermos a “essência do estádio”, em que todo menino e toda menina acordavam num domingo de manhã doidos pra ir pro estádio às 4 da tarde – se não houver competição real, justa e equilibrada, esses meninos e meninas vão caçar outra coisa pra fazer no seu domingo, e aí os perdedores seremos todos nós.
Todos os Campeões Brasileiros
1970 - Fluminense
1971 - Atlético-MG
1972 - Palmeiras
1973 - Palmeiras
1974 - Vasco
1975 - Internacional
1976 - Internacional
1977 - São Paulo
1978 - Guarani
1979 - Internacional
1980 - Flamengo
1981 - Grêmio
1982 - Flamengo
1983 - Flamengo
1984 - Fluminense
1985 - Coritiba
1986 - São Paulo
1987 - Sport
1988 - Bahia
1989 - Vasco
1990 - Corinthians
1991 - São Paulo
1992 - Flamengo
1993 - Palmeiras
1994 - Palmeiras
1995 - Botafogo
1996 - Grêmio
1997 - Vasco
1998 - Corinthians
1999 - Corinthians
2000 - Vasco
2001 - Athletico-PR
2002 - Santos
2003 - Cruzeiro
2004 - Santos
2005 - Corinthians
2006 - São Paulo
2007 - São Paulo
2008 - São Paulo
2009 - Flamengo
2010 - Fluminense
2011 - Corinthians
2012 - Fluminense
2013 - Cruzeiro
2014 - Cruzeiro
2015 - Corinthians
2016 - Palmeiras
2017 - Corinthians
2018 - Palmeiras
2019 - Flamengo
2020 - Flamengo