Tinga, o bicampeão da Libertadores que rompeu as barreiras do racismo dentro e fora das quatro linhas
Por Nathália Almeida
"Eu queria não ganhar todos os títulos da minha carreira e ganhar o título contra o preconceito contra esses atos racistas. Trocaria por um mundo com igualdade entre todas as raças e classes"
- Tinga em 2014, após sofrer racismo
Amplamente vitorioso dentro das quatro linhas, pioneiro fora delas e sempre vocal sobre a pauta racial. Neste sexto episódio do Marcos de Resistência, exaltaremos a carreira e a jornada de Paulo César Fonseca do Nascimento, popularmente conhecido como Tinga, um dos meio-campistas mais importantes do futebol brasileiro neste século.
Nascido na Restinga, bairro periférico e desigual da capital Porto Alegre, foi criado pela mãe junto de seus três irmãos. Marcada por dificuldades e pela ausência do pai, Tinga superou a infância difícil através do amor de sua mãe e do amor pelo futebol: "Minha mãe fez a base principal da minha vida. Ela saía todo dia às sete da manhã para trabalhar. Meu pai saiu de casa quando eu tinha sete anos", contou em entrevista à SporTV, em 2019.
As dificuldades levaram o garoto a sair de casa aos 15 anos de idade, indo morar na concentração do Grêmio, seu clube formador. Se destacou nas categorias de base e acabou sendo promovido ao profissional tricolor em 1997, conquistando duas edições de Campeonato Gaúcho (1999 e 2001) e Copa do Brasil (1997, 2001) com a camisa do Imortal.
O sucesso pelo gigante gaúcho, no entanto, não vinha sem peso para o guri humilde da Restinga. Isso porque, ao longo de sua adolescência e início de vida adulta, Tinga conviveu com a sensação incômoda de ser uma exceção: a maioria dos seus amigos, de origem igual ou semelhante a ele, teve a criminalidade como destino final, em virtude da falta de oportunidades dignas.
"Olho pelos números. De 90 a 99% das pessoas que se criaram comigo, ou estão mortos, ou presos. Falo de amigos que andavam diretamente comigo. É por isso que acho que é um milagre sair da Restinga e conseguir me tornar um jogador. "
- Tinga, em entrevista (2010)
O futebol acabou sendo a porta aberta para Tinga trilhar uma jornada diferente, mas se engana quem pensa que este caminho sempre lhe foi acolhedor e receptivo. Mesmo talentoso, inteligente e vencedor, o volante não conseguiu escapar de uma das violências enraizadas em nossa sociedade mais desumanizadoras que existem: o racismo.
De ofensas rasgadas em coro nas arquibancadas até "brincadeiras" preconceituosas de dirigentes com seu cabelo - que é, antes de tudo, uma manifestação de sua identidade e cultura -, o filho da Restinga foi alvo do que há de pior em termos de violência racista dentro e fora das quatro linhas.
"O preconceito que mais me machucou, e ainda machuca, é no olhar"
- Tinga, em entrevista (2019)
Apesar das marcas deixadas, Tinga se recusou a ser limitado ou reduzido às agressões que sofreu: seguiu brilhando dentro das quatro linhas, experimentando por duas vezes (2006 e 2010) a maior glória do futebol sul-americano: a conquista da Copa Libertadores, ambas pelo Internacional, onde tem status de ídolo atemporal. Passou por Portugal e Alemanha, representando camisas tradicionais do futebol europeu como Sporting e Borussia Dortmund. Trabalhou, prosperou e conseguiu o que era seu propósito desde guri: dar uma vida melhor à sua família.
Fora das quatro linhas, após sua aposentadoria dos gramados, seguiu rompendo barreiras e deixando um legado de pioneirismo como dirigente de futebol e empreendedor. Entre cursos de gestão técnica e esportiva, se engajou no mundo das palestras, sem deixar de lado o envolvimento com pautas e projetos sociais. E sempre sendo uma voz ativa na luta antirracista.
"Não é possível que num país com quase 50% de negros nós só tenhamos um treinador negro em 40 clubes (...) Cada um tem sua missão. A minha missão é estar aqui, num programa especial, falando sobre o assunto [racismo] "
- Tinga, no "Grande Círculo" (2019)
Por sua trajetória de luta, o 90min dedica o sexto episódio do Marcos de Resistência ao bicampeão continental e pioneiro, Paulo César Fonseca do Nascimento.